Locação por intermediação de plataformas digitais
*Wanderson de Oliveira
Por tratar-se de uma evolução tecnológica, a legislação em vigor não regula a locação por intermediação das unidades por meio de anúncio em plataformas digitais, tais como Airbnb e similares.
Nesse panorama, tem se tentado interpretar a natureza desse tipo de negócio a luz da legislação em vigor. Necessário, assim, partir de algumas premissas para melhor compreensão do caso.
A respeito do tema em análise: É locação? É hospedagem? É locação por temporada? Pode a convenção vedar sem afrontar o direito de propriedade? Convenção omissa? O serviço oferecido tem destinação comercial ou residencial?
Respostas que daremos sem a pretensão de esgotar o assunto, sendo assim, o presente trabalho não é um modelo, perfeito, acabado e livre de críticas.
Partimos do Recurso Especial número 1.819.075 / RS – Superior Tribunal de Justiça – STJ para melhor compreensão do que virá citado neste trabalho.
Foi amplamente divulgado pela mídia que o STJ teria proibido locações em condomínios por aplicativos, especificamente pelo Airbnb.
Cabe o alerta, não é verdade.
A corte superior julgou questão concreta, analisando elementos específicos da situação contida no processo. A proibição ou permissão de locação por meio de plataformas digitais não está resolvida pelo judiciário, tão pouco há consenso na doutrina e entre os construtores do direito especializados.
Assim, o referido julgado de 27/05/2021 serve como orientação/precedente atual sobre a questão. O assunto não está fechado, cabendo ainda nova análise pelas cortes superiores, quando provocadas, e até mesmo atuação legislativa do Congresso Nacional.
Locação tem previsão na lei 8.245/1991 em que dispõe sobre esse tipo de negócio em imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Trata-se de contrato firmado entre locador e locatário para uso e gozo, por tempo determinado ou não, mediante certa retribuição.
A citada trata, dentre outros, do contrato de locação residencial, sendo aquele em que se destina à moradia do locatário, ou seja, a locação tem por objeto a moradia. Se o imóvel for locado com fins comerciais, a locação deixará de ser residencial.
A hospedagem está prevista na lei 11.771/2008, em que se estabelecem normas sobre a Política Nacional de Turismo, contempla a modalidade de hospedagem para turismo com a seguinte previsão, no que interessa:
Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.
[…]
3º Não descaracteriza a prestação de serviços de hospedagem a divisão do empreendimento em unidades hoteleiras, assim entendida a atribuição de natureza jurídica autônoma às unidades habitacionais que o compõem, sob titularidade de diversas pessoas, desde que sua destinação funcional seja apenas e exclusivamente a de meio de hospedagem.
4º Entende-se por diária o preço de hospedagem correspondente à utilização da unidade habitacional e dos serviços incluídos, no período de 24 (vinte e quatro) horas, compreendido nos horários fixados para entrada e saída de hóspedes.
Como se observa, na hospedagem há um dever de prestação de múltiplos serviços agregados a essa espécie de locação, tais como, portaria, segurança, limpeza, arrumação entre outros. Questão, inclusive, já observada pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai de acórdão proferido pela Ministra Nancy Andrighi:
“O contrato de hospedagem encerra múltiplas prestações devidas pelo fornecedor hospedeiro ao consumidor hóspede, sendo o acesso às unidades de repouso individual, apesar de principal, apenas uma parcela do complexo de serviços envolvido em referido acordo de vontades”. (REsp 1.734.750/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/04/2019, DJe 12/04/2019).
A Locação por temporada, prevista no art. 48 da lei 8.245/91, é considerada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.
A locação em plataformas digitais, por sua vez, em regra, é o meio em que proprietários ou possuidores de imóveis disponibilizam suas unidades, seja completa, seja cômodos, a uma pessoa ou pessoas diferentes sem vínculo entre si, por curta temporada.
Envolve pelo menos três relações jurídicas distintas: Uma entre o chamado anfitrião e a plataforma digital. Outra entre o chamado hóspede e a plataforma digital. E uma terceira entre o anfitrião e o hóspede.
Calha destacar trecho do voto do Ministro Raul Araújo em recente julgado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça conceituando a modalidade de locação, ora tratada:
Trata-se de modalidade singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de estrutura típica residencial familiar, exercida sem inerente profissionalismo por aquele que atua na produção desse serviço para os interessados, sendo a atividade comumente anunciada por meio de plataformas digitais variadas, tais como Airbnb, Alugue Temporada (Home Away), Vrbo, Booking e outros. As ofertas são feitas por proprietários ou possuidores de imóveis de padrão residencial, dotados de espaços ociosos, aptos ou adaptados para acomodar, com certa privacidade e limitado conforto, o interessado, atendendo, geralmente, à demanda de pessoas menos exigentes, como jovens estudantes ou viajantes, estes por motivação turística ou laboral, atraídos pelos baixos preços cobrados. (REsp 1.819.075 / RS)
A respeito, o jurista Sílvio Venosa, em artigo recente, manifestou-se no seguinte sentido:
Na ampla problemática dos condomínios e empreendimentos assemelhados como loteamentos fechados, avulta mais recentemente a questão da hospedagem curta proporcionada pelo sistema denominado Airbnb.
Esse sistema consiste em uma plataforma on-line de hospedagem pela qual os interessados podem se hospedar em quarto ou imóvel inteiro (casa ou apartamento) por curta temporada. Utiliza um imóvel normal, e não uma pousada ou local específico para hospedagens. O sistema possui uma classificação do hóspede por estrelas. Os pagamentos são realizados por plataforma de cartão de crédito. (https://www.migalhas.com.br/depeso/296505/condominios-e-airbnb, acessado em 09.06.2021, 08:50 horas)
Na conjunção do até aqui destacado, é possível dizer que não há legislação em vigor aplicável a modalidade de locação por intermédio de plataformas digitais. Essa modalidade de locação, por ter características singulares, não se enquadra ou se regula por nenhuma das normas mencionadas, quais sejam: hospedagem, lei n. 11.771/2008; locação residencial ou locação por temporada previstas na lei n. 8.245/1991.
Resta, então, estabelecido o conflito, isto é, pode a convenção condominial proibir que proprietário ofereça locação por meio de plataformas digitais sem afrontar ao direito de propriedade?
No que concerne à hipótese de restrição ao direito de propriedade, calha dizer que o art. 1.228 da lei 10.406/2002 garante ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, entretanto, o direito deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais.
Nas relações condominiais diárias é comum ouvir de proprietários expressão do tipo “sou dono, faço o que quiser em minha casa”.
Não é bem assim. Para ilustrar, citamos o jurista Carvalho Santos:
“Ninguém pode usar de sua propriedade de um modo nocivo, estatui o Código, e com isso não fere nem arranha o direito do proprietário”.
Isso significa dizer que o direito a propriedade não é absoluto, não se pode fazer o que bem entender com o imóvel pelo simples fato de ser dono.
Tratando-se de condomínio é de conhecimento geral a existência de normas que regulam aquela comunidade, sendo a convenção e o regimento interno, os quais devem ser obedecidos pelos residentes.
Ao decidir pela moradia em um condomínio, automaticamente há adesão às suas normas, que devem ser submetidas a todos, de modo a preservar a paz social na localidade. É o que se extrai da doutrina especializada:
O condômino que for residir em prédio de apartamento ou for utilizar-se de um conjunto de comercial sabe, perfeitamente, que terá de obedecer à convenção de condomínio e ao regulamento interno do edifício.
Esses dois instrumentos determinam todas as regras para o bom funcionamento do prédio, contendo normas e proibições que possibilitem uma convivência harmônica entre os condôminos. É salutar que sejam respeitados os artigos da convenção, de forma preventiva, pois se, cada vez que houver uma transgressão aos preceitos ali estabelecidos, o condômino tiver de recorrer ao Judiciário, o convívio torna-se insuportável. (MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 179 e 180)
Ademais, os condôminos devem dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes (art. 1.336, iv, lei 10.406/2002).
A destinação residencial prevista na convenção deve nortear a conduta dos condôminos.
Extrai-se, por oportuno, trecho do voto do Ministro Raul Araújo a respeito no REsp 1.819.075 / RS:
[…] Portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso das unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade residencial (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV).
Não obstante isso, ressalva-se a possibilidade de que os próprios condôminos de um condomínio edilício residencial deliberem em assembleia, por maioria qualificada (de dois terços das frações ideais), permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando seu uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, incorporem essa modificação à Convenção do Condomínio. […]
A locação por meio de aplicativos, ante a ausência de vinculação entre os inquilinos, alta rotatividade de pessoas pode caracterizar, atividade comercial proibida pela convenção condominial.
Partindo para o arremate, afigura-se não só prudente, mas também necessário e correto que seja mencionado que a questão não está pacificada na doutrina e jurisprudência. Deste modo, o presente trabalho serve apenas para o cenário atual, cujas disposições aqui narradas podem sofrer alterações, inclusive legislativa.
As inovações tecnológicas avançam e tem dominado alguns mercados, a exemplo da Uber. A respeito de tais inovações, vale citar trecho de voto do Ministro Luiz Barroso do Supremo Tribunal Federal em que considera inócuo tentar proibir a inovação:
[…] Presidente, penso que nós temos de aceitar como uma inexorabilidade do progresso social o fato de que há novas tecnologias disputando mercado com as formas de tradicionais de oferecimento de determinados serviços. Acho que é inócuo tentar proibir a inovação ou preservar o status quo, assim como, com a destruição das máquinas de tear, no início do século XIX, por trabalhadores ingleses ou, pouco depois, na França, quando se começaram a vender roupas prêt-à-porter, em que os alfaiates também invadiram as grandes lojas, não foi possível frear a revolução industrial. […]
[…]Penso que nós estamos vivendo também, no Brasil, um processo importante de redução de uma das grandes discussões nacionais, que é o oficialismo – essa crença de que tudo que é relevante depende do Estado, das suas bênçãos e/ou do seu financiamento. […]
[…] A minha crença profunda hoje, analisando o Brasil, é de que nós precisamos é de mais sociedade civil, mais livre iniciativa, mais movimento social, e menos Estado; […]
(RE 1054110, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG05-09-2019 PUBLIC 06-09-2019)
Cabe ainda pontuar que o caso ora em exame, guarda ainda particularidade de tratar-se dos problemas que podem ser recorrentes com locação por meio de plataforma digital, dentre eles, alta rotatividade, insegurança, uso indevido de espaços comuns, perturbação do sossego entre outros.
Neste ponto, houve, inclusive, preocupação do Ministro Raul Araújo e da Ministra Maria Isabel Gallotti em seus respectivos votos no REsp 1.819.075 / RS, o qual destacamos:
[…] Apenas para ilustrar e facilitar a compreensão, exemplifica-se: o ingresso equivocado de pessoas, devido a compreensível engano do porteiro pela dificuldade de controle de movimentação de entrada e saída, disponibiliza para aproveitadores oportunidade para arrombamento fácil de apartamentos fechados em razão de viagem de condômino ou para outras formas de roubo, até mais violentas. Sem falar em outros crimes. […] Ministro Raul Araújo.
[…] Assim como o Ministro Raul Araújo, penso que, em se tratando de casas, o proprietário terá liberdade bem mais ampla para destinar o imóvel com propósitos apenas residenciais ou comerciais, terá flexibilidade em relação à entrada e saída dos moradores e ao emprego do imóvel, do que acontece em condomínio, no qual os condôminos são vinculados aos termos da convenção e há questões como a segurança e também as atividades dos servidores do condomínio, que podem ser impactados com o modelo de negócios do Airbnb. […] Ministra Maria Isabel Gallotti.
Feitas as ressalvas, fortes nas premissas suscitadas, deve-se assentir, então, que a locação por meio de plataformas digitais não se enquadra em nenhum dos tipos legais previstos (locação, temporada ou hospedagem), mas, sim, conforme entendimento recente do STJ, uma modalidade atípica, ainda sem regulamentação.
A convenção ao determinar destinação estritamente residencial das unidades, não abre espaço para locações de natureza comercial, a qual pode estar figurada às oferecidas por meio de plataformas digital, já que não se enquadram em atividades residenciais. Assim, fica vedado utilizar, alugar, ceder ou explorar no todo ou em parte, os apartamentos para fins que não sejam estritamente residencial.
Pelo contexto dos serviços oferecidos pelas plataformas, pode-se tranquilamente concluir que não se tratam de atividades com destinação residencial, aproximam-se muito mais de comerciais.
Não há afronta, em tese, ao direito de propriedade, que não é absoluto, conforme entendimento pacificado na doutrina e jurisprudência. Ademais, no confronto entre interesses individuais e o dos condôminos, deve prevalecer o interesse da coletividade.
Nesta ordem de ideias, de modo a trazer um regramento mínimo e específico ao caso concreto, sendo omissa a convenção, cabe aos condôminos decidirem, por meio de assembleia especialmente convocada para alteração da convenção, de modo a permitir ou vedar expressamente a locação por meio de plataformas digitais. Deste modo, estaria, em tese, preservada a autonomia privada dos condôminos. Em todo caso, fica resguardado a judicialização pelo interessado em busca de direito que acredita ter.
Nesse momento, três advertências se interpõem sobre o quórum (art. 1.351 – Lei 10.406/2002): um de alteração da convenção, que exige aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos e outra da destinação do condomínio, que exige unanimidade dos condôminos. Por fim, entendemos que apenas pela unanimidade dos condôminos seria possível estabelecer regras sobre a utilização de plataformas digitais em condomínios já instituídos com destinação residencial, pois, a hipótese seria de alteração da destinação do local, não apenas da permissão do uso de plataformas digitais para locação. Ressalvado entendimento contrário, inclusive no precedente recente do STJ (REsp 1.819.075 / RS), que pugnou pela aprovação de 2/3 (dois terços).
Demais disso, cobra realçar que a omissão da convenção sobre o tema não autoriza a locação por plataformas digitais, devendo ser observada a destinação do condomínio descrita na convenção. Se residencial, não há possibilidade.
Reiteramos que o tema não está pacificado. Certamente voltará a ser debatido pelas instâncias superiores do judiciário ou até pelo legislativo, entretanto, por ora, esse é o nosso entendimento, salvo melhor juízo.
*Wanderson de Oliveira é advogado na Advocacia W. de Oliveira, em Goiânia – GO.