Não há se temer o risco de possível instabilidade das relações jurídicas, uma vez que referida lei possui destinatário certo
Por Vander Andrade
Uma das mais recentes alterações do Código Civil brasileiro, ainda guarda debates e embates calorosos, a maioria deles apontando possível afronta ao texto constitucional, com isso entendendo a novel legislação como refratária às diretrizes insertas na Carta Magna, razão pela qual, vem sendo reputada por alguns estudiosos como texto de lei inconstitucional.
Estamos a nos referir à lei 14.405 de 12/7/22, que altera o Código Civil brasileiro, para tornar exigível, em condomínios edilícios, a aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos para a mudança da destinação do edifício ou da unidade imobiliária.
A maioria dos argumentos pro inconstitucionalidade defendem a tese da afronta a um direito fundamental, assim concebido como o direito de propriedade. Na ótica de tais juristas, a lei deixa de reconhecer os pressupostos elementares do princípio da função social da propriedade e exsurge no ordenamento normativo pátrio como verdadeira ameaça à estabilidade das relações jurídicas, na medida em que acarreta ao proprietário um risco de ver a unidade imobiliária que integra o seu acervo de bens divorciada de sua finalidade original.
Não entendemos dessa forma. Em verdade, para que possamos compreender a adequação da referida lei com o texto constitucional vigente, precisamos nos valer da conjugação de diversos métodos de interpretação, bem como do estudo mais amplo que envolve, inclusive, os princípios regentes do direito condominial.
Uma das abordagens necessárias para que se possa compreender o novo preceito, em sua consonância com a ordem legal e constitucional, depende de seu próprio posicionamento no âmbito do Código Civil brasileiro.
Com efeito, da conjugação dos artigos 1.332, III, 1.334, caput, e 1.336, IV, do diploma civilista, deflui-se que a finalidade do edifício e de suas respectivas unidades imobiliárias deve se fazer presente da convenção de condomínio e do ato de registro da instituição condominial.
Assim é que a anterior redação do art. 1.351 do Código Civil, exigia manifestação unânime dos coproprietários, caso fosse pretendida alteração da destinação imobiliária. Doravante, o quórum de 100% se fará dispensável, bastante e suficiente que 2/3 dos condôminos se manifestem em assembleia regularmente convocada para referido fim.
O novo modelo mitiga o rigor do dispositivo de lei revogado, confirmando uma tendência já há muito tempo consolidada, no sentido da relativização do vetusto caráter de direito absoluto da propriedade, que não mais encontra guarida em nossa ordem jurídica.
Contudo, existem resistências doutrinarias, defendendo a tese de que a propriedade persiste se descortinando como um direito absoluto, exclusivo e complexo. Não há negar, contudo, que a propriedade se delineia como o mais completo dentre todos os direitos reais. Ela possui caráter erga omnes e permite ao titular de domínio os direitos de gozo, de uso, de disposição e de reivindicação. Daí a se entender ser a propriedade um direito absoluto, como defendiam os romanos, parece-nos algo distante da realidade fática e de nosso sistema normativo.
O novo Direito Constitucional entende relativos até mesmo os direitos mais caros à pessoa humana como é o caso da vida, que pode ser atingida nos casos de legítima defesa, e da liberdade, que pode sofrer restrições, nas hipóteses de prisão legal. Tal como estes direitos fundamentais, a propriedade se depara com uma série de restrições, que perpassam as searas criminal, civil e administrativa, onde instrumentos como perdimento, a expropriação e a penhora, sob mero título ilustrativo, demonstram como tal direito pode ser atingido, a depender da configuração fática e jurídica em que ele se apresenta.
É ainda com lastro na Constituição Federal que se observam determinadas diretivas, como a denominada função social da propriedade (art. 5º, XXIV, CF), função socioambiental do domínio (art. 224 CF), e a função econômica da propriedade, erigida esta ao status e patamar de princípio da ordem econômica constitucional (art. 170, II, CF). À luz deste último princípio, a propriedade deve exercer sua função econômica, devendo ser utilizada para geração de riqueza, garantia de trabalho, recolhimento de tributos ao Estado, e principalmente, a promoção do desenvolvimento econômico.
A conclusão resta inevitável. O direito de propriedade não é absoluto, uma vez que são diversas as possibilidades de mitigação ou até mesmo de perda das prerrogativas vinculadas à propriedade. O interesse coletivo, subjacente à função social e socioambiental e o interesse individual, perceptível na hipótese da usucapião, podem prevalecer aos interesses do titular de domínio.
Com efeito, o próprio Código Civil, em seu art. 1228, delineia os vetores para intelecção do significado e alcance da função social da propriedade, ao dizer:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
De ser observado que, especialmente no parágrafo primeiro do art. 1228 do diploma civilista, é delineado que o "...direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais". (grifo nosso)
Destarte, fica claro e patente que a função social da propriedade não pode ser compreendida em sua máxima amplitude se tal processo hermenêutico de compreensão de seu significado e alcance deixar de considerar a importância do princípio da função econômica da propriedade.
É certo que o direito de propriedade possui a categoria jurídica de direito fundamental, no que não há se olvidar tal posicionamento. Também é certo asseverar que a Constituição Federal República, de um lado, salvaguarda a prerrogativa essencial à propriedade, conquanto exija simultânea observância à sua função social (art. 5º, XXIII).
O estudo da propriedade e de sua função social está intrinsecamente relacionado ao estudo do seu aproveitamento econômico em face dos titulares de domínio e de suas consequências jurídicas no meio em que vivem, no sentido de se avaliar as perdas ou ganhos econômicos decorrentes do uso e fruição do imóvel, da eficácia dos institutos jurídicos que operacionalizam o devido aproveitamento da propriedade, bem como dos benefícios sociais oriundos do devido aproveitamento do bem.
Atualmente, observam-se diversos e conjugados movimentos de relativização do direito privado, em razão da função social e econômica da propriedade.
Como afirma Bercovici "...os direitos individuais não devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo em seu exclusivo interesse, mas como instrumentos para a construção de algo coletivo". Trata-se do historicamente erigido "processo de "funcionalização" da propriedade", o qual foi explicitado por Karl Renner, quando este assevera que "a função social da propriedade se modifica com as mudanças nas relações produtivas, transformando a propriedade capitalista, sem socializá-la". Por seu turno, Bercovici afirma que "a função social operou uma mudança essencial no capitalismo, na medida em que passou a fundamentar juridicamente a propriedade". (BERCOVICI: 2005; 145).
Desta forma, torna-se imperativo considerar que a propriedade deve ser traduzida como um bem de necessidade essencial, sendo que a sua fruição e o seu uso devem ser identificados como condição inerente ao atendimento das necessidades individuais e coletivas. À guisa de ilustração, tem-se que estas necessidades podem estar alinhadas aos fins de moradia, comércio, indústria etc.
Nessa linha, torna-se forçoso reconhecer que a exigência de aprovação unânime pelos coproprietários quanto à finalidade da propriedade imobiliária, exigindo uma convergência simultânea e integral de vontades, culmina por inviabilizar, para alguns casos, dito específicos, a tomada de decisões na esfera condominial. A se manter tal entendimento, um único condômino, ainda que titular de diminuta fração, poderia hipoteticamente obstar a mudança finalística da propriedade imobiliária, em detrimento da vontade da maioria dos titulares de domínio.
Ademais, impõe-se o recurso aos métodos histórico, teleológico, sociológico e, até mesmo, ao Direito Comparado. Não tem sido raras as mudanças sociais e econômicas que tem impactado fortemente os condomínios edilícios, comprometendo sua viabilidade e sustentação econômica.
Diversos edifícios empresariais, situados nos centros das grandes metrópoles, tem sofrido de forma consistente com as alterações do mercado de trabalho, seja por meio das novas opções de teletrabalho ou de home office, seja pela possibilidade da realização de atendimentos ou de reuniões on line, seja até mesmo pelo prestígio conferido às ferramentas digitais de comunicação e de circulação de documentos e de recursos financeiros, alterações que ganharam impulso, de um lado, em decorrência da revolução tecnológica que caracteriza os tempos atuais, e de outro, dos novos desenhos empresariais que passaram a ser consolidados em momentos de crise sistêmica, como no caso da pandemia da Covid 19.
Paradoxalmente, persiste uma crise habitacional de elevada intensidade, que se soma aos vultosos indicadores de déficits habitacionais. Estudos realizados no âmbito do mercado imobiliário apontam que a procura por espaços comerciais individualizados e personalizados vem caindo ao longo dos anos, com isso gerando vacância em salas e edifícios dotados de finalidade comercial. Some-se a isso as novas tendências de trabalho em espaços conjugados e multifuncionais, tem-se uma nova configuração para os espaços laborais.
De outro lado, assiste-se o Poder Público buscando alternativas à deterioração dos centros urbanos, por meio da criação de instrumentos legais e da instalação de equipamentos públicos voltados para a revitalização de espaços vitais, esforços que tiveram êxito em diversas cidades do mundo e que começam a ganhar corpo e forma no Brasil.
Uma das mais bem sucedidas experiências internacionais ocorreu na cidade de Nova York, mediante a edificação do "High Line", um parque linear público no West Side de Manhattan revitalizado a partir de um trilho de trem sem uso. Seu exemplo nos mostra a importância da revitalização urbana, especialmente nas grandes cidades.
A realização dessa área, a partir da obra pública, envolveu projetos de arquitetura, paisagismo e urbanismo conjugados com o retrofit privado, não tardando a impactar positivamente diversos estabelecimentos empresariais abandonados e precarizados na região circunvizinha, que passou a ser empregada com finalidade residencial ou comercial, tornando-se, em pouco tempo, uma das áreas mais caras e valorizadas de toda a cidade. Ações semelhantes aconteceram em Miami, onde existe o design District, em Barcelona, com o Poblenou, e mesmo em Londres, onde se aproveitou dos jogos olímpicos para a revitalização do bairro de Stratford, uma das áreas mais pobres e carentes da Europa, na zona leste da cidade.
Esses espaços redesenharam e ressignificaram os espaços públicos metropolitanos, conectando pessoas aos seus bairros de moradia, agregando e adicionando novos modais de mobilidade, aumentando a segurança pública, com isso trazendo maior qualidade de vida para seus moradores.
Em nosso país, podem ser citados os exemplos da cidade de São Paulo onde programas como o "Requalifica Centro", criado por meio de lei municipal em 2021, estabelece incentivos fiscais para a efetivação de ações voltadas para o retrofit urbano e para a reconfiguração dos espaços habitacionais.
Na cidade de Belo Horizonte existem estudos preliminares na linha da conversão de edifícios comerciais e hoteleiros em espaços de moradia e residência.
No Rio de Janeiro, o programa "Reviver Centro", prevê estímulo à locação social e incentivos fiscais para a construção de novas moradias e à conversão do uso de prédios comerciais para transformá-los, após reforma, em edifícios de uso residencial ou multimodal.
Destarte, seja sob o prisma finalístico, flexibilizar o modelo decisório incidente sobre a possibilidade de alteração da finalidade do condomínio edilício, seja sob o aspecto da função social e econômica da propriedade, vemos a novel legislação como extremamente benfazeja, alinhada com os mais relevantes interesses sociais e econômicos, e perfeitamente alinhada às diretrizes e postulados constitucionais, conquanto tenha chegado com censurável atraso, próprio dos trópicos.
Não há se temer o risco de possível instabilidade das relações jurídicas, uma vez que referida lei possui destinatário certo: os espaços residenciais ou empresariais ou mesmos mistos que imprescindem serem reconfigurados para atingir o desiderato maior de qualquer direito fundamental: a dignidade humana, que deve ser compreendida, não somente sob a ótica de um direito fundamental individual, mas sob o espectro de uma tutela social mais ampla, que tenha o condão de permitir à propriedade gerar efetiva riqueza, e incluir todos os que intentem se amoldar às novas exigências de nossos tempos.
Vander Andrade
Advogado. Especialista, Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Professor Universitário e de Pós-Graduação. Presidente da Associação Nacional de Síndicos Profissionais.