Edifício JK: gestão de quase 40 anos no prédio vira briga na Justiça
Moradores do Conjunto Governador Kubitschek, mais conhecido como Edifício JK, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, brigam na Justiça para anular a eleição de novembro do ano passado que reelegeu como síndica Maria Lima das Graças para seu 38º ano de mandato à frente dos prédios tombados pelo patrimônio cultural da cidade e que abrigam uma população estimada em 5 mil pessoas, superior à projetada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019 para 223 municípios mineiros. Uma cidade vertical de 1.139 apartamentos, que movimenta uma receita declarada de pelo menos R$ 7,2 milhões a cada ano.
Quem se opõe à continuidade da gestão tão duradoura denuncia diversas ilegalidades que teriam sido cometidas pela atual síndica, entre elas ausência de contagem de votos, obstáculos para candidatura de chapas concorrentes – como exigência de fiança no impressionante valor de R$ 4 milhões –, não apresentação de balancetes de forma transparente e a exigência, por parte do condomínio, de autorização para reformas dentro dos apartamentos. Apesar de procurada, a gestora não se manifestou sobre as denúncias até o fechamento desta reportagem, tampouco sua defesa o fez.
As polêmicas com a administração do condomínio são tão antigas quanto o tempo que ela já dura. E não faltam processos envolvendo a síndica dos prédios. Mas, agora, uma nova geração de condôminos se uniu em uma cruzada para tentar contestar na Justiça, de forma coletiva, o que classificam como irregularidades. O processo foi formulado em meio a diversas queixas e questionamentos feitos por moradores diante da nova eleição. Em caráter de urgência, foi solicitada liminar para a suspensão imediata do pleito.
“A síndica eleita em 4 de novembro de 2020 de forma ilegal e irregular exerce esse cargo na requerida há cerca de 30 anos, e desde então as eleições que organiza não acontecem de forma correta”, afirma o documento. “A requerida manipula moradores e resultado, forja votos, usa de trapaças e mentiras, cria dificuldades para as chapas concorrentes etc.”, diz trecho da ação.
INVESTIDA COLETIVA
O processo é movimentado por quatro moradores. "Vários processos correm contra a administração, mas nunca houve uma ação coletiva. Decidimos nos unir", afirma o consultor e professor de informática Wellington Alves Berloffa, de 57 anos, que mora há seis no Bloco B do JK e integra a ação. O grupo afirma contar com apoio de pelo menos outros 100 moradores que participam de uma organização pelo WhatsApp. Também foi criada uma página no Instagram com mais de 1 mil seguidores, incluindo, ex-moradores e ex-funcionários.
Antes mesmo da assembleia que vem sendo questionada, conforme o Estado de Minas mostrou no fim do ano passado, a única chapa opositora, denominada “Nosso JK”, não teve tempo hábil para formalizar a concorrência. Julieta Sueldo Boedo, de 48, nascida em Buenos Aires e moradora de Belo Horizonte há 20 anos, desde 2015 condômina do Bloco B do JK, integrava a grupo e tem o nome incluído na petição entregue à Justiça. Segundo ela, o comunicado da assembleia foi divulgado em 30 de outubro – quatro dias antes da reunião. Porém, ela afirma não ter recebido o convite em seu apartamento.
“A assembleia foi convocada de forma irregular, sem o prazo mínimo de aviso para os moradores, impedindo com isso que mais condôminos pudessem comparecer. Alguns moradores foram convocados na véspera, outros nem chegaram a ser informados, e não havia nenhum comunicado nas áreas comuns do conjunto, a não ser na véspera”, sustenta Julieta.
No dia da votação, os opositores da síndica dizem ter sido surpreendidos por um forte esquema de segurança, que cerceou a entrada de procuradores regularmente constituídos, inclusive de advogados. “Os condôminos estavam aptos com suas obrigações condominiais e ainda assim foram impedidos de participar por meio de seus procuradores regularmente constituídos, devendo a citada assembleia ser declarada nula, pois não deixaram todos os condomínios ter acesso ao local da reunião”, sustenta outro trecho da ação. Julieta afirma que tudo na assembleia foi feito para impedir a participação dos moradores presentes.
Intimidações e ’teatro’
Ao fim da assembleia que reelegeu a síndica do edifício JK, foi incluída na pauta a votação de exigência de fiança de R$ 4 milhões para aqueles que tivessem a intenção de se candidatar ao cargo. O intuito seria “adequar” uma próxima disputa ao pleito, mas adversários da atual afirmam que a medida inviabiliza qualquer concorrência ao cargo administrativo.
A condômina Julieta Boedo afirma ainda que, na assembleia, sofreu humilhações. “Sofri constrangimento, preconceito e xenofobia. O advogado alegou que eu não estava entendendo o português falado na assembleia, por ser argentina, sendo que sou tradutora juramentada concursada de português e espanhol e formada em letras pela UFMG). No fim da sessão, a síndica disse que o Brasil não é uma ditadura como meu país, a Argentina, sendo que a ditadura lá terminou em 1983 e hoje é um país democrático como o Brasil”, completou.
Outro morador, que preferiu não se identificar, contou que “as assembleias são um grande teatro orquestrado para ela (Maria das Graças) sempre se reeleger”. “Há muitos funcionários que são colocados nas assembleias para fazer coro para ela e de certa forma, intimidar moradores.” O sentimento de medo revelado no pedido de anonimato é perceptível quando se conversa com quem se opõe à gestão da síndica. Até porque muitos dizem já ter sido processados por se opor a ela.
A própria Julieta, que fazia parte de chapa de oposição, afirma ter recebido uma intimação, por iniciativa da síndica, em que era acusada de difamação após dar entrevistas a veículos de imprensa sobre a eleição no JK. Inclusive ao Estado de Minas, que na época tentou contato com a síndica, mas não teve retorno. “Em 4/11/2020, foram publicadas inúmeras matérias jornalísticas, nos mais diversos veículos de imprensa, em que a requerida, moradora do mesmo condomínio, em entrevista, fez insinuações sobre a lisura, a transparência e a imagem da parte autora”, diz o documento.
A síndica incluiu no documento um abaixo-assinado “feito por outros moradores do Condomínio JK, no qual pedem providências quanto às atitudes da ré, pois acreditam que elas possam refletir até mesmo no valor das unidades imobiliárias existentes no condomínio, desvalorizando seu valor de mercado”.
PROCURAÇÕES
Outro ponto contestado no processo é a apresentação de procurações que elegeram a síndica. "As procurações que o advogado repete que a síndica tem, e que lhe dão maioria em todas as votações, em nenhum momento puderam ser verificadas pelos condôminos, nem por nenhum grupo isento sem vínculo com a atual administração. Ou seja, não temos como saber se existem realmente essas procurações, nem quantas são, se são vigentes ou se estão em conformidade com a lei", afirma Julieta.
Moradores que se opõem à gestão da síndica sustentam ter consultado a ata registrada em cartório e lá não foi encontrada nenhuma procuração. “Deveriam ter sido anexadas à ata da assembleia e levadas ao cartório para registro, o que não foi realizado”, afirma a ação que questiona o pleito e parte dos votos que levaram a atual síndica à reeleição. “Se em nenhum momento foram apresentadas as procurações com poderes para votação, consequentemente é impossível conhecer o quantitativo de votos que reelegeu a síndica, o que demonstra que a votação da assembleia é nula de pleno direito”, apontou o documento.
Balanço das despesas
A prestação de contas é uma obrigação legal dos síndicos conforme o artigo 1.348, VIII, do Código Civil, ao prever que as contas devem ser prestadas em assembleia ou quando exigidas. E esse é um ponto importante no processo movimentado pelos moradores que se opõem à gestão de décadas do JK.
Segundo o processo, após a assembleia que reelegeu a atual gestão, condôminos se dirigiram à sede da administração geral para ter acesso aos balancetes, no intuito de vistoriar se os documentos estão em dia com os pagamentos de impostos, empregados e demais obrigações. Porém, segundo o grupo de oposição, a síndica não quis apresentar os papéis, alegando que estavam em poder da contabilidade.
“Muito embora os requerentes tivessem visto alguns destes documentos nas mãos de determinada funcionária na administração”, informa outro trecho da ação. O resultado dos balancetes de março, abril e maio deste ano mostram despesas de mais de R$ 800 mil por mês. O grupo de moradores que questiona a atual gestão pede guias de recolhimento, comprovantes de pagamento de encargos sociais e de contas, relatório de receitas e despesas dos últimos cinco anos, extratos bancários, valor atual do fundo de reserva, entre outros documentos, para que possam fazer uma auditoria.
Ainda segundo o processo, no dia da votação, o presidente da assembleia disse que a receita mensal do condomínio gira em torno de R$ 600 mil. "A pergunta que aqui fica é: como assim gira em torno? Como pode em uma assembleia de prestação de contas ser trazido valor aproximado?", questiona Julieta.
SILÊNCIO
O Estado de Minas tentou entrar em contato com Maria Lima das Graças por cinco vezes, durante três semanas, por meio da administração do condomínio. Diante da informação de que não seria possível fornecer um número para falar diretamente com a síndica, contatos foram deixados com os atendentes, com pedido de retorno. Também houve contato com o advogado que a representa na ação, da mesma forma sem retorno.
Diante da falta de resposta aos relatos dos denunciantes, a reportagem buscou em trechos da defesa da síndica argumentos que se contraponham às acusações. Em um dos documentos a que o EM teve acesso, o advogado que representa Maria Lima das Graças classifica um dos moradores responsáveis pela ação contra a cliente como “demandante compulsivo" e "morador antissocial” e alega que os outros tiveram problemas com a administração.
A defesa dela sustenta que os moradores se uniram com o intuito de formar um "grupo minoritário" de condôminos, que vem criando "inacreditáveis" problemas ’’pelo único motivo de a síndica ocupar o cargo há mais de 30 anos.’’ Segundo o documento, diante da expectativa fracassada de se candidatar, o grupo busca confundir a Justiça na tentativa de anular a assembleia, classificada como “democrática”.
A defesa afirma que a reeleição da síndica ocorreu de acordo com o disposto na Carta de Convenção e nas leis civis. E sustenta que a eleição de Maria Lima das Graças “se deu pela maioria absoluta dos presentes, quase que unânime, além de votos por procuração”. As alegações quanto às irregularidades na prestação de contas, assim como todas as outras, são equivocadas, segundo a defesa, que argumenta ainda que a ata tratou de forma clara e abrangente a assembleia.
Como meio de solucionar as preocupações de condôminos devido, segundo a defesa, ao receio de terem o valor de suas propriedades afetado, foi incluído na votação o arbitramento da fiança no valor de R$ 4 milhões, a ser exigida de síndicos profissionais que viessem a gerir o condomínio, e cuja aprovação se deu pela maioria absoluta dos votantes.
Na ocasião, foi informado que tal valor corresponderia a aproximadamente seis meses de receita do condomínio. “Desta feita, note-se que todos os assuntos colocados em votação foram aceitos e aprovados por centenas de condôminos, contra apenas meia dúzia da oposição”, argumenta a defesa de Maria das Graças.
CIDADE VERTICAL
1.139
Número de apartamentos do Conjunto Governador Kubitschek, conhecido como edifício JK
34
Total de andares na torre mais alta do JK. A outra tem 22
R$ 7,2 milhões
Receita anual declarada pelo condomínio
5 mil
População estimada que vive nas duas torres, projetadas em 1952 pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012)