Em dias de confinamento, o conceito de vizinhança ganhou ainda mais importância. Longe da convivência com familiares, condôminos têm se organizado para encontrar soluções durante a quarentena. Vale até conversar pela janela
Quase inoperante, o grupo de WhatsApp do Condomínio Jacuí, no bairro Santana, em Porto Alegre, costumava discutir entre cinco moradores as obras no prédio de 15 apartamentos. Tudo mudou no início deste mês, a partir do anúncio da Organização Mundial da Saúde (OMS) de pandemia de coronavírus. Hoje, 11 moradores participam ativamente, se comprometem a informar os que não estão na lista e até o nome do grupo passou de Condomínio/Telhado para Condomínio Jacuí.
— O grupo está mais organizado, mais unido. Parece uma família. A empatia cresceu depois do isolamento — atesta o síndico do edifício Cristopher Moraes, da Diferencial Síndicos.
Entre as decisões tomadas em conjunto, os vizinhos decidiram na semana passada dispensar a auxiliar de serviços gerais, que continuará recebendo o salário durante a quarentena. Neste período, duas moradoras se revezarão na função duas vezes por semana.
Uma delas é a turismóloga Miriane Schmidt, 47 anos. Durante duas horas, ela limpa as portas e os botões do elevador nos quatro andares, passa álcool no corrimão e maçanetas e alvejante nos corredores e escadarias. Na ânsia de ajudar ainda mais os vizinhos, ela reuniu telefones de todos os tipos de telentregas e os repassou no grupo para quem não pode sair de casa. Outros moradores se ofereceram para auxiliar os mais idosos nas compras semanais.
— É impressionante como mudou a nossa convivência como condomínio. As pessoas estão se ajudando. Espero que isso não mude depois que este isolamento acabar — comenta Miriane.
Pensando no isolamento dos amigos que moram sozinhos, a turismóloga, que mora com o marido e um filho, ainda tem dedicado algumas horas do dia para conversar por telefone e pelas redes sociais com quem enfrenta a situação sem companhia em casa.
— Estou usando o meu tempo livre para fazer algo bom — ensina.
Assim como Miriane, o violinista Luiz Guilherme Nóbrega, 32 anos, e a mulher, a professora de piano Marina Gimenez, 29, decidiram acabar com o isolamento forçado dos que vivem nos 67 apartamentos do Condomínio Residencial Edifício Soho Connect, na zona sul da Capital. Pelo menos, virtualmente. Na semana passada, depois de um ensaio em casa, os dois começaram a receber mensagens positivas dos que haviam acompanhado a distância e até de quem não tinha conseguido ouvir, por morar mais longe.
Marina, então, propôs ao marido um recital virtual para a vizinhança. O casal avisou pelo grupo e, na noite de sábado passado, mais de cem pessoas acompanharam a apresentação virtual em uma live do Instagram. O recital foi finalizado com muitas palmas em formato de emojis.
— O prédio sempre foi bom de morar, mas agora, ainda mais. Tem sido muito legal essa interação, pois ela se ampliou — revela Marina.
Luiz Guilherme encontrou uma das vizinhas na lavanderia do prédio, no dia seguinte. Os dois não se conheciam pessoalmente. Respeitando a distância de dois metros, ela fez questão de elogiar a iniciativa. Outra moradora, a psicóloga Caroline Portz também fez questão de deixar mensagens para o casal na própria rede social.
— Foi superlegal, eles são maravilhosos e foi uma forma de descontrair e relaxar. Ações como essa trazem leveza para um momento tão difícil que estamos passando, ajudam a descontrair e a quebrar a nova rotina que cada um precisou estabelecer — ressalta.
Entusiasmados, Marina e Luiz Guilherme fizeram um pocket show com temas de filmes na tarde de quarta-feira (25). Novamente, os vizinhos que não estavam trabalhando remotamente naquele horário participaram da live. A dupla pretende continuar levando música aos vizinhos nos próximos dias.
Para o síndico do prédio, Rafael Lopes, da Maestria Síndicos, são novos tempos no Soho Connect:
— Uma onda de colaboração surgiu depois da pandemia. Há quem peça uma cebola e a recebe na porta. Outros se oferecem para ajudar os mais idosos com as compras, e a interação ocorre o tempo todo. Ninguém mais reclama de nada.
No Edifício Ilhas Gregas, no bairro Jardim Botânico, onde mora o médico do trabalho e de família e comunidade Charles Martini Prates, 48 anos, a solidariedade surgiu em forma de consultas médicas gratuitas para os mais idosos. A iniciativa é uma tentativa de manter os moradores acima de 60 anos dentro do prédio durante o isolamento e partiu do conselho do condomínio, do qual faz parte a mulher de Prates, a contadora Roberta Prates, 44. Moradores do edifício há quase dois anos, eles perceberam que a maior parte dos vizinhos é de idosos.
A oferta de atendimento acabou gerando uma onda de ajuda. Pelo menos mais uma médica moradora do condomínio também se colocou à disposição para auxiliar no serviço. Em uma oportunidade anterior, Charles havia atendido às pressas uma vizinha em situação de emergência. Agora, preparado com luvas e máscara, está pronto para ir à casa dos idosos para atendê-los.
O médico poderá esclarecer dúvidas sobre o coronavírus, avaliar o paciente clinicamente e ainda fornecer receitas de medicamentos de uso contínuo. Tudo para facilitar a vida de quem está no grupo de risco do coronavírus.
— Precisamos levar a sério este isolamento para contermos a propagação. O que estiver ao meu alcance, farei para ajudar — afirma Charles, que se inscreveu para atuar como voluntário em um programa de combate ao coronavírus no Estado.
"Conheci, finalmente, a dona Odete"
Na correria do dia a dia, quase não fico em casa ao longo da semana. E, nos finais de semana, menos ainda. Hora de aproveitar a rua para as atividades de lazer. Em fevereiro, a trabalho, passei o mês fora de casa. A partir de 9 de março, porém, tudo mudou. Entrei num isolamento forçado por conta de uma gripe que virou pneumonia - meu teste para covid-19 deu negativo. Na sequência, veio o isolamento social de toda a cidade. Minha quarentena só continuou. Depois de uma semana recuperando as minhas forças, passei a ver a vida lá fora pelas janelas do apartamento.
E foi por uma delas que acabei conhecendo minha vizinha do andar de cima. A auxiliar administrativa aposentada Odete Pereira Tappes, 76 anos, havia se mudado no início de fevereiro e eu a tinha visto algumas vezes na passagem pela porta de entrada do prédio, carregando um poodle. Nunca havíamos conversado. Apenas um bom dia ou boa tarde rápidos, por educação.
Uma das vizinhas ficou sabendo que eu estava doente e avisou as demais. Numa tarde da semana passada, Odete me interfonou. Depois de se apresentar, disponibilizou-se a me ajudar no que eu precisasse. Sem jeito, agradeci. Ainda bem que havia sido pelo interfone. Assim, ela não me viu chorar de emoção. Afinal, quem deveria auxiliá-la era eu, 34 anos mais jovem. No entanto, doente, me tornei a pessoa que precisava de ajuda.
No dia seguinte, fui surpreendida com uma sacola pendurada na maçaneta da minha porta. Dentro, quatro maçãs e uma deliciosa sobremesa de morango. Era a Dona Odete me mimando. Passamos a conversar diariamente pelo interfone e pelas nossas janelas dos fundos. Ela tem uma filha médica, quase da minha idade, que está na linha de frente num hospital público em São Paulo. Angustiada com os relatos diários da filha sobre a situação na maior cidade do país, Dona Odete precisava de alguém para conversar por aqui. Me tornei sua ouvinte.
Ela me confidenciou que queria fazer um bolo, mas não tinha os ingredientes. Nesta semana, como agradecimento, deixei na porta do 301 um pacote de farinha e o fermento. Foi a vez dela demonstrar algum constrangimento, acho que engoliu o choro.
Em tempos de isolamento, só nos vemos pela janela. Mas tem sido o suficiente naqueles momentos de sensação de solidão. Outro dia, um amigo perguntou qual seria a minha primeira ação quando esta tempestade passar. Na hora respondi: quero dar um abraço na Dona Odete.
Depoimento da repórter da editoria de Comportamento de Zero Hora, Aline Custódio