O jeitinho brasileiro pode ser um fardo para o síndico
Em seu regimento interno provavelmente você encontra alguma destas normas de conduta básicas, comuns a muitos condomínios no Brasil afora: é vedado ao condômino jogar lixo pelas janelas e áreas comuns; é proibido ao usuário da garagem usar vagas dos outros sem autorização; caso animais sujem as áreas comuns, compete ao dono limpar. E, ainda assim, o síndico tem de ficar em cima para todos cumprirem as exigências.
Essas regras de convivência precisariam mesmo estar especificadas? Logicamente são responsabilidades óbvias e universais. Mas será que é assim em todo lugar do mundo? A resposta é não, conforme juristas que analisaram a cultura condominial e compararam com outros países. Nas palavras do advogado especialista na área condominial Márcio Rachkorsky, “só no Brasil, gestor de condomínio é babá de morador”.
Rachkorsky, comentarista da CBN e do programa de TV SP1 (filiada a Globo SP), além de membro da Comissão de Direito Urbanístico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) estudou a legislação e a forma de gestão dos empreendimentos do Uruguai, Argentina, Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra e Canadá. Seu objetivo era entender se nos outros países as relações no condomínio funcionavam da mesma forma que no Brasil, principalmente no que diz respeito às responsabilidades dos moradores e síndico.
“Para minha surpresa, somente aqui o gestor condominial precisa cuidar dos condôminos para ver se respeitam o direito mínimo do outro descansar, tratam bem o funcionário, levam o lixo corretamente para lixeira. Nos outros lugares, ele se limita a tratar das contas, manutenção e certificados (como o de sistema contra incêndio, manutenção de caldeiras e medição de para-raios). Questão de comportamento, cada um cuida de si”, explica o advogado de São Paulo.
Por conta da falta de bom senso de muitos moradores na relação com os outros e o ambiente coletivo, os regimentos internos são na maioria das vezes bem detalhados. “Chegam a ultrapassar 100 artigos. Tem que ter regra para tudo. Em tese, não precisaria estar escrito que as pessoas não podem jogar lixo pela janela, andar no condomínio com traje de banho e com o carro em alta velocidade”, ressalta. Em outros países, não precisa explicar a maneira de se portar, pois isso já é naturalmente respeitado. “Lá as regras são mais claras e enxutas”, explica Rachkorsky. Para o especialista, longos regimentos e convenções dão margens para diversas interpretações, o que facilita vastos debates nas assembleias e no Judiciário.
Outra característica comum no Brasil, bem diferente de muitos países, é a cultura dos edifícios daqui precisarem de funcionários para atender as necessidades mais banais dos moradores, como abrir porta ou manter seus corredores limpos, atividades realizadas pelos próprios condôminos nos países pesquisados por Rachkorsky. “Em Buenos Aires, na Argentina, por exemplo, o custo mensal com toda a equipe de funcionários é infinitamente menor porque os condomínios têm porteiro eletrônico, os moradores cuidam da limpeza de seus andares”, lembra Rachkorsky.
O advogado da área condominial de Florianópolis Zulmar Koerich Junior, que já viveu na Itália, Polônia, Portugal e Espanha, também observou que nos outros países o síndico não demanda tanto tempo com fiscalização do comportamento e relacionamento entre moradores. Para ele, é por conta da falta de educação que muitos condomínios no Brasil precisam de regimentos internos com tantas regras específicas.
Em todos os países em que morou, Koerich Junior identificou uma responsabilidade e independência maior dos moradores com relação ao síndico, de forma que essa figura possuía mais tempo para gerenciar o prédio. Mas a grande diferença encontrou na Polônia.
“Lá a reunião de condomínio durava 15 minutos, era tudo muito automática. Seguiam as regras, não faziam barulho, não deixavam sujeira em lugar nenhum. É um gigantesco respeito ao próximo, aos limites. Morei em três condomínios, todos com a mesma sistemática. Vi os síndicos geralmente tratando de questões de manutenção predial”, revela Koerich Junior.
De acordo com advogado de Florianópolis, o perfil mais individualista brasileiro se difere da cultura de países como a Polônia por um quesito histórico. “Diferente daqui, a Polônia passou por incessantes tempos de guerra. A ideia de reconstrução passa pelo senso de coletividade, pois precisa da união de todos. Com isso, as pessoas entendem que fazem parte de uma organização social maior e que têm que cumprir seu papel para que a sociedade dê certo”, pondera Koerich Junior.
Para Rachkorsky, essa necessidade dos moradores desrespeitarem regras, serem tutelados pelo síndico e servidos constantemente tem como pano de fundo a questão da educação. Além disso, “talvez o fator determinante seja que aqui os condomínios já nascem com toda uma estrutura para atender os moradores, desde síndico, subsíndico, conselheiros, zelador, faxineiro, entre outros”, enumera.
De olho nas artimanhas para burlar regras
Discriminar tudo o que se pode ou não fazer no regimento interno no Brasil. É o que defende o vice-presidente de Condomínios do Secovi das regiões de Florianópolis e Tubarão e CEO da Cond Solution, Walter Jorge Jr. Para ele, o país ainda não está maduro ao ponto de todos os moradores agirem mais com consciência do que com o receio de represália.
De acordo com Walter, que é bacharel em Direito, o brasileiro costuma viver conforme o ditado que diz: pode-se fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. A situação pode ser tão absurda quanto um caso peculiar que um colega de Walter Jr. teve de lidar. “A moradora jogou ketchup na porta da outra e, quando o síndico foi multar, ela perguntou onde estava escrito que aquele ato era proibido”, descreve.
O representante do Secovi considera que o excesso de regras em condomínio é necessário pelo fato de muitos brasileiros terem dificuldades em internalizar princípios morais e éticos imprescindíveis para nortear os atos das pessoas e, assim, garantir a harmonia da convivência social. Aliado a isso, ocorre dos moradores desconhecerem o regimento interno, o que faz o síndico precisar estar ainda mais atento ao comportamento diário dos condôminos.
Segundo Walter Jr., quando as regras são desfavoráveis, a tendência é o morador primeiramente tentar impor exceções ou encontrar alguma forma textual ou prática para burlar as normas. Um exemplo prático apresentado por Walter Jr está relacionado às áreas comuns de uso exclusivo de proprietários e inquilinos. “É corriqueiro pessoas que vivem no condomínio colocarem o nome de visitantes no rol de moradores para permitir a utilização de piscina e vagas rotativas, o que, inclusive, constitui falsidade ideológica, prevista no Código Penal”, alerta.
Dificuldade em diferenciar área privada da comum
Por que é tão difícil para muitos moradores terem bom senso e seguirem as regras nos condomínios de nosso país? Podemos afirmar que, entre outras motivações, está ligado ao famoso “jeitinho brasileiro”, aquela artimanha para levar vantagem perante os outros. Quando o condômino faz o que lhe convêm sem se importar com as consequências, sobra sempre o abacaxi para o síndico descascar.
O psicólogo, especialista em Antropologia e doutor pela Universidade Federal do Paraná Gilberto Gnoato, responsável pelo projeto de conscientização Jeitinho é Corrupção, observa que pode-se chamar de jeitinho aquelas atitudes para invalidar as regras do condomínio para si, mas que exige o cumprimento para o outro. “Jeitinho é quando se incomoda com o volume alto do vizinho, mas quando faz a festa acha que o outro não vai se incomodar”, explica o psicólogo.
O brasileiro, em geral, tem dificuldade em diferenciar o público do privado, ao qual podemos equiparar com a área privada e comum dos condomínios. “A ideia de público no Brasil está pervertida, é problema histórico. Assim, se as pessoas encontram algo na rua dizem: achei, não roubei”, diz Gnoato.
O problema de parte dos condôminos brasileiros com as leis ou as normas está relacionado ao fato de que elas universalizam os direitos, tornando todos iguais. O jeitinho é uma forma de mudar a regra a seu favor. “Alguns brasileiros encontram forma de transformar regra em algo particular, em benefício próprio”, avalia Gnoato.
Cultura de servidão
A necessidade de muitos condôminos de serem constantemente cuidados pelo síndico e de terem alguém sempre a atender suas necessidades, como abrir o portão e levar o lixo, entre outras tarefas triviais, também tem raízes em nosso passado escravocrata e na cultura paternalista. Por isso, há esse distanciamento na forma em que os condôminos brasileiros e os de outros países lidam com as tarefas básicas.
Segundo a doutora em sociologia política pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Adriane Nopes, com o processo de escravização no período colonial, os trabalhos domésticos foram subjugados como prática escravagista. “Após a abolição, essas atividades continuaram carregadas de estigma”, observa. Assim, parte da população se nega a realizar essas tarefas simples, que são terceirizadas.
Para Nopes, em uma relação paternalista, é comum o morador aproveitar para se esquivar de responsabilidades, deixando-as nas mãos do gestor condominial. Há ainda aquele tipo de pensamento: “o síndico está ali para me servir. Estou pagando (a cota), por isso não quero saber dos problemas. Assim, o morador passa a tutela do que considera pouco relevante”, analisa a socióloga.
Ao comparar a gestão e relação nos condomínios do Brasil com de outros países da América e Europa, pode-se ter uma má impressão. Mas há diferenciais por aqui, como as relações mais próximas entre moradores, a exemplo do condomínio em que o advogado Zulmar Koerich Junior mora, onde há até uma confraria.
Para Márcio Rachkorsky, o outro lado da moeda está relacionado à necessidade de muitos funcionários nos prédios do Brasil é a contribuição para geração de empregos formais. O Brasil também sai na frente nas questões relacionadas à estética predial. Em Montevideo, por exemplo, há muita descaracterização de fachada.
“Lá cada um coloca o toldo da cor que quiser, os ares-condicionados são uns diferentes dos outros. Aqui nos preocupamos bastante com a harmonia da fachada, o comum para nós é vermos os prédios bem pintados, com as frentes de todos os apartamentos iguais”, lembra.
Mas como seria bom se, além de um relacionamento mais caloroso e de edifícios melhor padronizados, tivéssemos nos condomínios de nosso país uma cultura em que os moradores fossem mais responsáveis pelos seus atos? Segundo Koerich Junior, essa realidade somente será possível por meio da educação, de modo que as futuras gerações tenham uma maior percepção sobre a importância de se pensar no coletivo. Já Rachkorsky acredita que o modo de administrar e viver em condomínio por aqui evoluirá.
“Acho que por se tratar de países mais antigos, há uma base de educação maior. Mas a gente ainda vai chegar lá”, conclui.