Animais de estimação podem se tornar motivo de conflitos entre moradores colocando em discussão o direito individual e o bem comum
Não é difícil encontrar casos de brigas entre vizinhos por um motivo que, para uns, é adorável e, para outros, nem tanto: cachorros. Cada vez mais cresce o número de pessoas que possuem animais de estimação, mas são os cãezinhos os principais causadores desses conflitos. Seja por barulho, por ameaça à segurança ou até mesmo mau cheiro, cães podem chegar a incomodar de maneira considerável outros condôminos.A questão é: pode um condomínio proibir um morador de possuir um animal de estimação?
“Poder, ele até pode. Existem muitas convenções antigas de condomínios que preveem a restrição de animais domésticos. Isso é letra morta? Praticamente. Se um morador entrar com uma ação judicial questionando a validade deste artigo da convenção ou regulamento interno ele vai conseguir derrubar essa cláusula”, responde o advogado especialista na área Alexandre Marques, vice-presidente da Comissão de Direito Condominial da OAB de São Paulo.
Ou seja: as proibições existem, mas atualmente são todas passíveis de questionamentos. A única maneira de um animal ser de fato proibido ou afastado do convívio da massa condominial é se ele resultar em prejuízo ao sossego, à salubridade e à segurança dos condôminos. O direito inviolável de propriedade e de intimidade e vida privada previstos no artigo 5° da Constituição Federal são básicos e nenhuma convenção ou normatização pode ferir essas garantias constitucionais de qualquer cidadão.
No entanto, o direito de um morador termina quando começa o de seu vizinho. Apesar de ser garantido o direito à posse de animais em sua unidade – e não apenas cachorros e gatos, mas até animais exóticos e silvestres desde que em consonância com o que se exige para se ter esses animais em casa – eles não podem apresentar incômodos ou ameaças às outras pessoas.
Segundo o secretário da Comissão de Direito Condominial da OAB de São Paulo Lino Eduardo Araújo Pinto a permanência desses animais no local “não deve ser admitida na hipótese de produzirem excesso de barulhos ou de se constituírem em uma ameaça à integridade física e à higiene dos outros moradores”. Para ele, a vida social contemporânea em condomínios exige restrições ao direito individual em prol do bem comum e a relativa tolerância dos condôminos, que devem suportar, uns dos outros, certa reciprocidade de incômodos. Esses inconvenientes, porém, não podem extrapolar a fronteira da tolerância normal.
Como medir o nível do incômodo?
Não basta a mera animosidade ou implicância que alguém tenha pelo seu vizinho. O nível de incômodo vai ser decidido no judiciário mediante provas. No caso de algum cachorro que incomode por barulho a ação deve apresentar provas. A Norma Brasileira (NBR) 10.151/2000 da ABNT regulamenta que o ruído em áreas residenciais não ultrapasse os limites de 55 decibéis para o período diurno e 50 decibéis para o período noturno. Aplicativos de celular podem ser usados ou aparelhos encontrados em lojas de materiais de construção para se medir a quantos decibéis chega o latido do cachorro. As provas testemunhais são as mais comuns, como outros vizinhos ou visitas que frequentem a residência e se dispõem testemunhar.
“É preciso lembrar que um princípio básico da vida em condomínios é o da isonomia de tratamento entre os condôminos. Não existem condôminos especiais ou de segunda classe. Todos têm deveres e obrigações na mesma proporção”, salienta Marques. Não é por simplesmente não simpatizar com um vizinho e seu animal de estimação que se pode querer restringir seu direito de possuí-lo em sua propriedade. O incômodo deve ser real e comprovado e cada processo é examinado judicialmente de acordo com as peculiaridades em cada caso concreto.
Restrições aplicáveis
No Paraná existe legislação que regulamenta a utilização de focinheira para certas raças de cachorros considerados mais violentos na circulação em áreas comuns. No caso de violação da norma a multa prevista é de R$ 570, a apreensão do cão e outras repercussões legais, como em caso de mordidas, o pagamento de uma indenização.
É justificada a proibição de animais por parte de proprietários de imóveis, que podem declarar em contrato essa exigência de um inquilino não possuir animais de estimação. Por direito ele pode fixar as condições de utilização do seu imóvel e fica a critério do locatário decidir se aceita ou não esta condição. Se o inquilino concordou com o contrato e agiu de má fé trazendo um animal para o imóvel, o proprietário pode pedir rescisão contratual.
E o condomínio pode determinar que os animais só andem no colo nas áreas comuns? É possível definir que os animais só podem ser transportados em determinado elevador - caso o prédio tenha mais de um - ou pode proibir a presença de animais em determinados locais do condomínio, como parquinho, piscina ou salão de festas?
A princípio, sim. “Uma coisa é o condomínio ter a discricionariedade de restringir, outra coisa é o morador que se sentir incomodado questionar a validade desse entendimento judicialmente. Do mesmo jeito que o condomínio tem o direito de impor as regras, os moradores têm o direito de questionar, para isso está aí o Judiciário”, explica Marques. Ele recomenda que o morador leve as restrições que o incomodam primeiramente para as assembleias de condomínio. Se a restrição for mantida, ele pode recorrer ao Judiciário. Mas vale lembrar que o juiz levará em conta que a assembleia manifesta a opinião da maioria dos moradores do condomínio.
A restrição que é mais facilmente derrubada na Justiça é a de que animais só podem ser carregados no colo. Marques relembra uma ação judicial em que uma senhora idosa contestou o fato de ser obrigada a carregar seu cachorro, que era pesado, dentro do condomínio, pois ela tinha um problema de mobilidade e não possuía condições de segurar o animal. A Justiça derrubou a restrição e ela passou a poder passear com ele preso apenas pela coleira.
Jurisprudência
"Na Justiça paranaense, por exemplo, há decisões em que moradores foram multados por causa de seus cachorros e tiveram o uso de áreas comuns restringido porque os animais apresentavam riscos aos demais moradores." Também há casos em que o regulamento interno vetava animais e a proibição foi julgada indevida mediante testemunhas e atestado da veterinária de que o cachorro era dócil e há dez anos convivia no condomínio sem perturbar outros condôminos. “Um caso julgado pelo STJ chamou a proibição de animais em certo condomínio de ‘fetichismo legal’, digno de desprezo por não ameaçar o sossego, salubridade e segurança dos moradores e deu sentença favorável ao condômino mesmo indo contra à convenção condominial”, conta o advogado Alexandre Marques.
Um caso conturbado em São Paulo, lembra o advogado Lino Araújo, foi referente à retirada de oito cães que há muitos anos viviam confinados num apartamento. Em razão dos transtornos provocados pelo barulho que faziam e dos odores desagradáveis que advinham das suas necessidades fisiológicas, para que pudesse ser cumprida a decisão judicial que determinou a retirada de todos os cachorros (com a exceção de apenas um) foi necessário ao Oficial de Justiça contar com o auxílio de força policial, chaveiro e funcionários do Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo, além do acompanhamento da União Internacional Protetora dos Animais para se evitar posteriormente qualquer alegação de maus tratos.